Governo aposta em tributação das bets após derrota de alternativa ao IOF e estuda decretos e novo projeto de lei
Por: Camila Turtelli e Thaís Barcellos
Fonte: O Globo
No dia seguinte à derrota no Congresso de uma das principais medidas
econômicas do governo, o Palácio do Planalto começou a reorganizar sua
estratégia para tentar fechar as contas de 2025 e 2026. A aposta agora é insistir
na tributação das casas de apostas on-line — as chamadas bets —, considerada
pelo entorno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma pauta de “apelo
popular” que pode dificultar um movimento da oposição contrário a essa
medida.
A avaliação no governo é que insistir na taxação das bets permitiria reverter o
desgaste político causado pela derrota da Medida Provisória (MP) alternativa ao
aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), que caducou nesta
quarta-feira após a Câmara aprovar um requerimento de retirada de pauta da
proposta.
O Planalto trabalha em duas frentes: a edição de decretos para compensar parte
da perda de arrecadação e o envio de um projeto de lei em regime de urgência,
que deve resgatar pontos centrais da MP, com foco na cobrança retroativa de
apostas e na limitação de compensações tributárias indevidas.
O governo estimava arrecadar cerca de R$ 5 bilhões apenas com a cobrança
retroativa sobre as empresas que operaram antes da regulamentação do setor.
Com a limitação das compensações, a arrecadação seria da ordem de R$ 10
bilhões em 2025 e 2026.
Tudo ainda, porém, está na fase de análise, sem martelo batido e à espera do
retorno de Lula a Brasília. Em entrevista para a rádio Piatã, da Bahia, nesta
sexta-feira, o presidente ainda sinalizou que vai insistir no aumento da
tributação para o sistema financeiro, sobretudo as fintechs, novatas no setor.
No Ministério da Fazenda, interlocutores afirmam que a única coisa que não
está em jogo é uma mudança na meta fiscal. O ministro Fernando Haddad
cancelou a participação em um evento da Associação Brasileira de
Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) nesta quinta-feira, em São Paulo, para
ficar em Brasília e começar a traçar um plano para compensar o impacto fiscal
previsto na MP, especialmente para o ano que vem.
Decretos e bloqueios no radar
Com o fim da MP, o governo perdeu cerca de R$ 46 bilhões em receitas e cortes
previstos até 2026 — R$ 31 bilhões em arrecadação frustrada e R$ 15 bilhões
em medidas de contenção de despesas. Para este ano, a estimativa era de um
ganho de R$ 15 bilhões com as medidas, enquanto para o ano que vem a
previsão chegava a R$ 30 bilhões, valores que já estavam embutidos na proposta
orçamentária de 2026.
Para 2025, o mais provável é aumentar o congelamento de despesas no
Orçamento, hoje de R$ 12,1 bilhões, afetando inclusive emendas parlamentares.
Para 2026, a situação é mais complicada. Junto com o projeto que corta
benefícios fiscais, que está parado no Congresso, são cerca de R$ 50 bilhões
que a equipe econômica terá de correr atrás para fechar as contas do ano que
vem.
Nesse caso, o governo deve insistir em medidas de arrecadação, mas ainda não
há nenhuma decisão. No rol de alternativas, estão aumento de impostos que
não precisam do aval do Congresso, como o IOF e o IPI, inclusão de parte das
iniciativas da MP em outros projetos ou ainda com receitas extraordinárias.
— O Ministério da Fazenda tem um arsenal de alternativas. Pode apresentar
um projeto de lei em regime de urgência para pontos da MP, por exemplo.
Assim como é natural que o IOF volte à mesa como alternativa — disse na
quarta-feira o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PTAP).
O relator da MP, Carlos Zarattini (PT-SP), também defendeu a adoção de
instrumentos infralegais:
— Tem várias coisas que podem ser feitas por decreto. Definições de alíquota
de imposto que não precisam de lei, que são IOF, IPI, tem portarias. Há uma
série de medidas que podem ser adotadas.
Na avaliação do economista Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos, o
vencimento da MP deve piorar o resultado primário do ano que vem em R$
17,2 bilhões, já que uma parcela dos ganhos iria para estados e municípios. Para
compensar essa perda, o economista considera que o governo pode inserir as
partes menos polêmicas da MP, como as compensações, em algum projeto de
lei, prioritariamente em algum que já esteja em estágio avançado de discussão.
Outra opção seria aumentar as alíquotas de IOF para os níveis do decreto
original, de maio. Nesse caso, o ganho seria em torno de R$ 7 bilhões. Ainda
há a opção de obter mais recursos de dividendos ou leilões de petróleo.
— Não vemos o governo mudando a meta neste momento, porque, além de
haver alternativas para compensar as perdas, os custos da mudança na meta
seriam elevados em termos de impacto em câmbio e juros, por exemplo.
Ofensiva na comunicação
Em outra frente, o governo tenta conter o desgaste político com uma ofensiva
coordenada de comunicação. A Secretaria de Comunicação Social (Secom)
tenta alinhar o discurso de que a rejeição da MP prejudica a população e
favorece os mais ricos, reforçando a ideia de “justiça tributária” que tem guiado
o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
A orientação é destacar que a medida rejeitada taxava lucros e aplicações
financeiras de alta renda, enquanto mantinha intocados os benefícios para a
população de menor renda. Segundo interlocutores do Planalto, o objetivo é
reposicionar a derrota como uma escolha do Congresso que “tirou recursos da
saúde, da educação e do Bolsa Família para proteger bancos e grandes
investidores”.
O próprio Lula, que havia feito um apelo público antes da votação, repetiu em
conversas internas que “quem votou contra a MP votou contra o povo
brasileiro”.
Haddad também deu pistas sobre essa estratégia nesta quarta-feira, um pouco
antes da abertura da sessão que enterraria a medida. Chamou a responsabilidade
para os setores mais ricos da população e para os políticos que já estariam
pensando no ano eleitoral.
— É um acordo que não penaliza o trabalhador, que não penaliza 99% da
população e não penaliza nem 1%, mas chama o 1% a responsabilidade de
garantir que o país continue funcionando bem — disse Haddad. — Penso que
aqueles que querem desorganizar o orçamento, como fizeram em 2022, com
finalidade eleitoral, vão se equivocar pela segunda vez — completou.
Para embasar essa narrativa, aliados do ministro disseram que era importante
que a votação não fosse acachapante, como aconteceu com a derrubada do
decreto do IOF, quando o governo só teve 98 votos, de um total de 481.
O objetivo era conseguir apoio de 150 a 200 deputados para mostrar que a
rejeição não era a visão da Casa sobre a MP, mas de grupos interessados na
disputa pelo Palácio do Planalto em 2026 e de setores econômicos privilegiados.
No final, 193 deputados rejeitaram o requerimento de retirada de pauta, contra
251 votos a favor.
Antecipação eleitoral
A decisão da Câmara foi interpretada no Planalto como uma reação política e
um sinal de antecipação da disputa eleitoral de 2026. Partidos do Centrão, como
PP e União Brasil, fecharam questão contra o texto, e aliados do governo
atribuem a articulação à base do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas
(Republicanos), potencial adversário de Lula na próxima eleição.
A rejeição da medida foi vista como uma das maiores derrotas da atual gestão
no Congresso, uma semana após a aprovação do projeto que isenta de Imposto
de Renda quem ganha até R$ 5 mil.
O presidente do PP, Ciro Nogueira, classificou a proposta como “mais um
assalto ao bolso do contribuinte” e disse que seu partido é “totalmente contrário
a qualquer aumento de carga tributária”.
Relatos do Congresso apontam que a pressão de setores afetados pela MP,
como as bets e as fintechs, aumentou muito nesta quarta-feira. A indústria de
fundos também entrou com força na jogada após uma alteração da medida na
comissão especial aumentar ainda mais a distância da tributação de aplicações
financeiras em relação a títulos isentos.
A proposta original do governo era uniformizar a alíquota da maioria das
aplicações em 17,5% (hoje, de 15% a 22%, conforme o prazo do investimento)
e tributar os isentos em 5%. Para tentar um acordo, no entanto, o relator da
medida, deputado Carlos Zarattini (PT-SP), recuou da iniciativa de acabar com
a isenção e aumentou a taxa para o restante das aplicações para 18%.
Em relação às fintechs, a proposta era acabar com a faixa de 9% de cobrança
de CSLL. As menores, portanto, pagariam 15% e, as maiores, 20%, como os
bancões. O entendimento de Lula é que as novatas no sistema financeiro
precisam pagar o "imposto devido" ao país, uma vez que cresceram e ainda têm
tributos menores do que os principais bancos do país.
No entanto representantes das novatas afirmam que o imposto efetivo sobre a
renda dessas empresas já é maior do que os bancos, embora a alíquota nominal
seja menor. Levantamento da Zetta, da Associação Brasileira de Fintechs
(AbFintechs), da Associação Brasileira de Crédito Digital e da Associação
Brasileira de Internet (Abranet) aponta que, em 2024, a tributação efetiva média
sobre as fintechs foi de 29,7%, contra 12,2% dos bancos.
Quanto às bets, o advogado Bernardo Cavalcanti Freire, sócio do escritório
Betlaw, que é consultor jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias
(ANJL), argumentou que a tributação de 12% começou a valer em janeiro e que
não faria sentido aumentá-la antes de uma análise sobre sua efetividade.
— Ninguém está falando de um aumento depois de décadas, como no caso de
outros pontos da medida provisória. A discussão é sobre um aumento depois
de apenas dez meses.